segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Electra de Nelson Rodrigues

AVÓ – [o mar] Não gosta de nós. Querem levar toda a família principalmente as mulheres. Basta ser uma Drummond, que ele quer logo afogar. Um mar que não devolve os corpos e onde os mortos não bóiam! Foi o mar que chamou Clarinha. Chamou, chamou... Tirem esse mar daí; depressa! Tirem, antes que seja tarde! Antes que ele acabe com todas as mulheres da família!
[…] 
(Misael estende os pés sobre uma pequena almofada. Usa botinas de botão. Imediatamente, Moema ajoelha-se, cheia de solicitude, e põe-se a descalçá-lo. Já sem botinas, Misael concede em suspirar, meio eufórico.)
MISAEL - Essas botinas maltratam muito os pés.
(Muito humilde e doce Moema substitui as duras botinas do pai por outro calçado, mais leve e macio)
MISAEL - Era Clarinha quem me fazia isso... Agora és tu.
MOEMA - Agora sou eu. E amanhã, e depois, e sempre.
MISAEL - Ainda ontem ela me descalçou e me acariciou os pés, passou a mão assim...
MOEMA - Eu também sei acariciar, pai... (baixando a cabeça, com vergonha, esboça no ar o afago prometido)
[…]
MISAEL - Tu és culpada de tudo...
MOEMA - Foi o destino.
MISAEL - De tudo... Culpada de tudo... Eu não teria feito o que fiz... Teria perdoado tua mãe... Os velhos perdoam... Tu me disseste para castigá-la aqui. Eu te obedeci, Moema, fiz o que mandaste, e, sem ódio, com um ódio que não era meu, era teu... Eu teria perdoado juro, Deus é testemunha...
MOEMA - Choras ainda essa mulher?
MISAEL - Eu te amaldiçôo, Moema!
MOEMA - Ela está morta... E mesmo que estivesse viva, mesmo que estivesse aqui, não poderia fazer isso que eu faço... E eu posso, ouviste? Olha!
MISAEL - Tuas mãos!
MOEMA - Chora tua mulher...
MISAEL - Não!
MOEMA - Chora tuas filhas!... Chora... Desde menina, meu sonho era ficar sozinha contigo nesta casa; queria ser a filha única, a única mulher desta casa... E agora sou tua filha única...
MISAEL - Minha filha única.
MOEMA -... E única mulher... Estamos sozinhos, pai, na casa vazia... Entra nos quartos, nas salas, procura nos espelhos, ninguém...
MISAEL - E tua avó?
MOEMA - Eu lhe dava de comer e de beber, mas há muitos dias que me esqueço... E, pouco a pouco, ela foi perdendo as forças... Hoje, de manhã, deixou de respirar...
MISAEL - Manda tua mãe embora... E para sempre... Que não volte mais...
(Moema está diante do espelho. Aparece ainda a imagem de D. Eduarda no seu luto fechado e nas suas gazes ensangüentadas. Mãe e filha continuam fazendo os mesmos movimentos
MOEMA - Deixei de ser tua filha... A única coisa que nos unia eram as nossas mãos... Tu perdeste as tuas... E eu me libertei de ti...
[…]
(Moema está imóvel diante do espelho. Então acontece o que ela deseja. Estendendo os braços sem mãos, D. Eduarda vai recuando, recuando, até desaparecer. É a vitória de Moema. Frenética ela corre para o pai. Senta-se no chão. Coloca a cabeça de Misael no próprio regaço. A cabeça do último Drummond tomba na direção da platéia. Os olhos estão abertos e fixos. A filha nada percebe, na embriaguez do seu triunfo)
MOEMA - Expulsei-a do espelho... Foi-se embora... Não voltará nunca mais...

RODRIGUES, Nelson, Senhora dos Afogados (1955).

2 comentários:

Patrícia Lino disse...

Relembro, a propósito disto, as palavras de Magaldi:

«Não me lembro em que circunstância, reli há muitos anos Senhora dos Afogados e, de repente, saltou para mim o seu vínculo com Mourning becomes Electra2, a bela trilogia de Eugene O'Neill. Encontrei-me logo depois com Nelson Rodrigues e quis saber por que ele não revelara ter feito uma paráfrase da obra norte-americana. Nelson achou muita graça e disse do seu espanto ao passar despercebida a semelhança, quando das primeiras leituras dos amigos na estréia do espetáculo (...). Observar tão proposital evidência, segundo o dramaturgo, era tarefa do crítico e não dele.»

Importa também realçar, a par da Senhora dos Afogados, as peças Álbum de família, Anjo Negro e Dorotéia (escolho, entre elas, Anjo Negro - Medeia, século XX, e os já visíveis contornos da obsessão no palco): todo o percurso dos grandes dramaturgos, alguém dizia, começa sempre nos gregos e estende-se até à sua realidade de origem; ora de tragédia a tragédia carioca, e da tragédia carioca à obsessão em três actos (Toda a nudez será castigada).

Irónico ou não, Nelson acaba, na minha vida, por ser também uma obsessão, dessas obsessões literárias e crescentemente presentes.


- Mãe! Mãe, ali, no céu!
- O quê, minha filha?
- Um anjo pornográfico!

Joana Costa disse...

Se há vantagens práticas nas convalescenças, a maior é ter desculpa para não fazer mais do que colocar a leitura em dia. Tenho lido algumas das tuas sugestões de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos; são, realmente, descobertas duras, íntimas, inegavelmente belas (O Beijo no Asfalto, O Beijo no Asfalto...).