Francesco Hayez, Odisseu arrebatado pela canção de Demódoco
Qualquer tentativa de compreender, na medida das nossas possibilidades, a natureza da representação e da memória, do facto e da ficção, deve começar no tribunal dos Feaces, no livro VIII da Odisseia. Demódoco, o aedo cego (a vista tornou-se visão) canta para os senhores reunidos e para o seu desconhecido hóspede. Canta as batalhas antes de Tróia, canta Ulisses. Ao ouvir-se cantado, o viajante sucumbe ao pranto. [...] Ele já passou à insubstancial eternidade da ficção. Foi esvaziado numa lenda. Não há poética depois de Homero, não há estudo filosófico sobre o estatuto do imaginário relativamente ao empírico, que seja mais penetrante. Encontram-se, na literatura e nas artes, outros actos priviligeados de reflexividade interior, tais com os fragmentos do Fígaro tocados em casa de D. Juan na sua última ceia, ou com o regresso do narrador a Veneza na obra de Proust. Nenhum deles é mais rico nem mais complexo do que Ulisses ouvindo Demódoco.
STEINER, George.
Qualquer tentativa de compreender, na medida das nossas possibilidades, a natureza da representação e da memória, do facto e da ficção, deve começar no tribunal dos Feaces, no livro VIII da Odisseia. Demódoco, o aedo cego (a vista tornou-se visão) canta para os senhores reunidos e para o seu desconhecido hóspede. Canta as batalhas antes de Tróia, canta Ulisses. Ao ouvir-se cantado, o viajante sucumbe ao pranto. [...] Ele já passou à insubstancial eternidade da ficção. Foi esvaziado numa lenda. Não há poética depois de Homero, não há estudo filosófico sobre o estatuto do imaginário relativamente ao empírico, que seja mais penetrante. Encontram-se, na literatura e nas artes, outros actos priviligeados de reflexividade interior, tais com os fragmentos do Fígaro tocados em casa de D. Juan na sua última ceia, ou com o regresso do narrador a Veneza na obra de Proust. Nenhum deles é mais rico nem mais complexo do que Ulisses ouvindo Demódoco.
STEINER, George.
Errata: Revisões de uma Vida, Relógio d'Água, 2009.
(Trad.: Margarida Vale de Gato)
Δημόδοκ᾽, ἔξοχα δή σε βροτῶν αἰνίζομ᾽ ἁπάντων.
ἢ σέ γε μοῦσ᾽ ἐδίδαξε, Διὸς πάϊς, ἢ σέ γ᾽ Ἀπόλλων·
λίην γὰρ κατὰ κόσμον Ἀχαιῶν οἶτον ἀείδεις,
490 ὅσσ᾽ ἔρξαν τ᾽ ἔπαθόν τε καὶ ὅσσ᾽ ἐμόγησαν Ἀχαιοί,
ὥς τέ που ἢ αὐτὸς παρεὼν ἢ ἄλλου ἀκούσας.
ἀλλ᾽ ἄγε δὴ μετάβηθι καὶ ἵππου κόσμον ἄεισον
δουρατέου, τὸν Ἐπειὸς ἐποίησεν σὺν Ἀθήνηι,
ὅν ποτ᾽ ἐς ἀκρόπολιν δόλον ἤγαγε δῖος Ὀδυσσεὺς
495 ἀνδρῶν ἐμπλήσας οἵ ῥ᾽ Ἴλιον ἐξαλάπαξαν.
αἴ κεν δή μοι ταῦτα κατὰ μοῖραν καταλέξηις,
αὐτίκ᾽ ἐγὼ πᾶσιν μυθήσομαι ἀνθρώποισιν,
ὡς ἄρα τοι πρόφρων θεὸς ὤπασε θέσπιν ἀοιδήν.
(XVIII. 487-498)
"Demódoco, a ti louvo eu mais que a qualquer outro homem,
ἢ σέ γε μοῦσ᾽ ἐδίδαξε, Διὸς πάϊς, ἢ σέ γ᾽ Ἀπόλλων·
λίην γὰρ κατὰ κόσμον Ἀχαιῶν οἶτον ἀείδεις,
490 ὅσσ᾽ ἔρξαν τ᾽ ἔπαθόν τε καὶ ὅσσ᾽ ἐμόγησαν Ἀχαιοί,
ὥς τέ που ἢ αὐτὸς παρεὼν ἢ ἄλλου ἀκούσας.
ἀλλ᾽ ἄγε δὴ μετάβηθι καὶ ἵππου κόσμον ἄεισον
δουρατέου, τὸν Ἐπειὸς ἐποίησεν σὺν Ἀθήνηι,
ὅν ποτ᾽ ἐς ἀκρόπολιν δόλον ἤγαγε δῖος Ὀδυσσεὺς
495 ἀνδρῶν ἐμπλήσας οἵ ῥ᾽ Ἴλιον ἐξαλάπαξαν.
αἴ κεν δή μοι ταῦτα κατὰ μοῖραν καταλέξηις,
αὐτίκ᾽ ἐγὼ πᾶσιν μυθήσομαι ἀνθρώποισιν,
ὡς ἄρα τοι πρόφρων θεὸς ὤπασε θέσπιν ἀοιδήν.
(XVIII. 487-498)
"Demódoco, a ti louvo eu mais que a qualquer outro homem,
quer tenha sido a Musa a ensinar-te, quer o próprio Apolo.
É com grande propósito que cantas o destino dos Aqueus -
tudo o que os Aqueus fizeram, sofreram e padeceram -
como se lá estivesses estado ou o relato ouvido de outrem.
Mas muda agora de tema e canta-nos a formosura do cavalo
de madeira, que Epeu fabricou com a ajuda de Atena:
o cavalo que o divino Ulisses levou para a acrópole pelo dolo,
depois de o ter enchido com os homens que saquearam Ílion.
Se estas coisas me contares na medida certa,
direi a todos os homens que na sua benevolência
o deus te concedeu a dádiva do canto inspirado."
(XVIII. 487-498)
HOMERO.
Odisseia, Cotovia, 2008.
(Trad.: Frederico Lourenço)
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