sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Amores de Adriano

"Animula vagula, blandula,  
Hospes comesque corporis,  
Quæ nunc abibis in loca  
Pallidula, rígida, nudula,  
Nec, ut soles, dabis iocos..."
P. Ællius Hadrianus

"Pequena alma, terna e flutuante, 
Hóspede e companheira de meu corpo, 
Vais descer aos lugares 
Pálidos, duros, nus, 
Onde terás de renunciar aos jogos de outrora..." 
P. Élio Adriano
                                                                  Epígrafe

Minha vida, onde tudo acontecia tarde — o poder e também a felicidade —, adquiria o esplendor de um pleno meio-dia, das horas ensolaradas da sesta, quando todas as coisas estão banhadas por uma atmosfera dourada, desde os objetos do quarto até o corpo estendido a nosso lado. A paixão total possui uma espécie de inocência; é quase tão frágil como qualquer outra: o resto da beleza humana passava à condição de espetáculo, deixava de ser a caça de que eu fora o caçador. A aventura banalmente começada enriquecia e ao mesmo tem simplificava minha vida: o futuro pouco me importava. Cessei de questionar os oráculos; as estrelas passaram a ser apenas admiráveis desenhos na abóbada do céu. Jamais havia observado com tanta delícia a palidez da madrugada sobre o horizonte das ilhas, a frescura das grutas consagradas às ninfas e frequentemente visitadas pelas aves de arribação, o vôo compacto das codornizes ao crepúsculo. Reli os poetas. Alguns pareceram-me melhores do que antes, a maior parte pareceu-me pior. Escrevi versos que me pareceram menos insuficientes do que de hábito. 

Mais sincero que a maioria dos homens, confesso sem subterfúgios as causas secretas dessa felicidade: a calma tão propícia aos trabalhos e às disciplinas do espírito parece-me um dos mais belos efeitos do amor. Espanto-me de que essas alegrias tão precárias, tão raramente perfeitas no curso de uma vida humana, independentemente da forma pela qual as tenhamos procurado ou recebido, sejam consideradas com tanta desconfiança por pretensos sábios que lhes receiam o hábito e o excesso, em lugar de temer sua falta e sua perda. Admiro-me de que utilizem, para tiranizar seus sentidos, um tempo que seria mais bem aproveitado para educar ou embelezar sua alma. 

Arriano partilhava desses pontos de vista. Passei toda uma noite a discutir com ele a injunção que consiste em amar ao próximo como a si mesmo; é demasiado contrária à natureza humana para ser sinceramente obedecida pelo homem comum, que sempre amará a si mesmo, e não convém de modo algum ao sábio, que nunca ama particularmente a si próprio.

YOURCENAR, Marguerite, Memórias de Adriano.
São Paulo: Círculo do Livro, 1974.

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