quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

De Narciso para Eco


Tu me chamas blasphemo? Os Ceos teem raios;

minhas blasphemias Jupiter castigue.
Não: maldizer de amor, chamar-lhe insano,
despresal-o, fugir-lhe, e, se podésse,
seu culto destruir na terra toda,
sacrilegio não é, nem mesmo é culpa.

[...]

Põe de parte a paixão, que te allucina;
vae, consulta a rasão, busca a verdade.
Do Cephiso meu pae nas santas margens
vôa de Themis ao sagrado templo.
Quando entrares no bosque, onde elle existe,
por entre os antiquissimos loireiros, 
a demandar o Oraculo infallivel.
Tu mesma escutarás sua resposta;
saberás qual Amor co'os homens seja.
Depois que infesto, assolador diluvio
em ermo, em solidão mudára a terra,
o bom Deucalião, e a amavel Pirrha,
sós escapados ao geral naufragio,
foram buscar o Oraculo de Themis.
E a resposta da deusa acaso ignoras?
«Ide, lhes disse, renovae o mundo,
«mas não busqueis a Amor; de Amor nasceram
«os delictos, que os Ceos assim puniram
«c'o a geral extincção da humana especie.
«Arrojae para traz as duras pedras;
«por ti, Deucalião, os homens nasçam,
«por ti, ó Pirrha, o melindroso sexo.
«Fugi, torno a dizer, ao deus funesto,
«malvado autor da perversão dos povos.»






CASTILHO, António Feliciano de.
Excerto da Carta VI
in Cartas de Ecco a Narciso, Empreza da História de Portugal, 1903.

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