Servo
Assim que saiu do templo, levando consigo o seu novo filho para o festim e para o sacrifício em honra dos deuses, o marido de Creúsa foi para onde se vê saltar o fogo do deus báquico, a fim de banhar com o sangue das vítimas os dois rochedos de Dioniso, em acção de graças pelo filho encontrado. E disse: “Fica tu aqui, meu filho, e monta, pelo trabalho de artífices, uma tenda bem ajustada a toda a volta. E se, ocupado com sacrifícios aos deuses do Nascimento, me demorar muito, serve a teus amigos presentes o banquete.” Pegou nas novilhas e partiu. O jovem marcou com estacas, solenemente, os contornos não murados da tenda, depois de observar, cuidadosamente, os raios do Sol, para que ela não ficasse exposta aos fogos do meio-dia, nem tampouco aos que terminam no ocidente. Deu a medida dum pletro aos lados dos ângulos rectos, com o espaço interior de dez mil pés, como dizem os peritos, a fim de convidar para o banquete todo o povo de Delfos. E cobriu a tenda com tecidos sacros dos tesouros, maravilha para os olhos dos homens. Em primeiro lugar, mandou lançar sobre o telhado um panejamento, que o filho de Zeus, Héracles, consagrara ao deus como despojo das Amazonas. Estavam tais tecidos urdidos com figuras: Urano no círculo do éter reunindo os astros; Hélios guiando os seus cavalos para a última chama do dia arrastando a luz brilhante da Estrela da Tarde; a Noite, de negra veste, conduzindo o seu carro puxado por uma só parelha, e os astros seguindo a deusa; a Plêiade avançando no meio do éter, com ela Órion, armado de espada e, no alto, a Ursa voltado a sua cauda dourada para o pólo; o disco da lua cheia que divide o mês, dardejando de cima os seus raios; as Híades, sinal aos mareantes tão seguro, e a Aurora, portadora de luz expulsando os astros. E, sobre as paredes, dispôs também tapeçarias orientais, com naus bem guarnecidas de remos em face das helénicas, monstros metade homens, metade animais, e cavaleiros caçando veados e perseguindo ferozes leões. À entrada, junto de suas filhas, Cécrops, desenrolando as suas espirais, oferenda de algum ateniense. E, no meio da ala, colocou as taças douradas. Então um arauto, levantando-se na ponta dos pés, anunciou que podiam tomar parte no banquete todos os Délfios que quisessem. E, quando a tenda se encheu, todos se coroaram de flores e se saciaram de abundante alimento. Depois que se acalmou o apetite, um velho, avançando para o meio da tenda, provocou a hilaridade dos convivas, com o seu zelo obsequioso, porque, ora trazia a água dos jarros para lavar as mãos, ora queimava essência de mirra, ora se encarregava das taças douradas, atribuindo-se a si próprio este serviço. E, quando chegou a hora das flautas e do crater comum, o velho disse: “É preciso retirar as pequenas taças de vinho e trazer as grandes, para alegrar mais depressa o coração dos convivas.” Era um fervilhar dos que traziam taças de prata lavada e taças de ouro; e, escolhendo uma, como para prestar homenagem ao seu novo Senhor, o velho deu-lha cheia, lançando no vinho um veneno poderoso, que – dizem – a nossa Soberana lhe tinha dado para que o filho recém-descoberto deixasse a vida. E ninguém era sabedor disto. Mas, quando o filho revelado segurava nas mãos, com os outros, a taça das libações, um servo proferiu uma palavra de mau agouro. Ele, criado no templo entre bons adivinhos, entendeu o presságio e ordenou que enchessem outro crater. Entretanto, ofereceu à terra a libação já preparada do deus e mandou a todos fazer o mesmo. Fez-se silêncio. Com água e vinhos dos Montes Bíblinos enchemos os crateres sagrados. Enquanto assim estamos ocupados, irrompem na tenda, em bando, as pombas que no templo de Lóxias tranquilamente habitam: no vinho espalhado, mergulham avidamente o bico, conduzindo a bebida aos seus pescoços de bela plumagem. Para todas a libação do deus foi inofensiva, excepto para uma só: a que pousou onde o novo herdeiro tinha derramado o vinho, e saboreou a bebida, e imediatamente sacudiu, em delírio, o seu corpo de belas penas, e soltou, gemendo, um grito ininteligível. Toda a multidão dos convivas ficou estupefacta, ao ver o sofrimento da ave, que, palpitando, morre, estendendo as patas purpúreas. Então o filho anunciado pelo oráculo, arremessando o manto, lança os braços nus sobre a mesa, gritando: “Quem é que me queria matar? O seu nome, velho! Era então este o teu zelo: da tua mão recebi a taça!”. Imediatamente agarra o velho pelo braço e interroga-o, a fim de o apanhar em flagrante. Descoberto , este denuncia, a custo, sob a acção de tortura, a audaciosa resolução de Creúsa e o expediente da bebida. Logo o jovem revelado pelo oráculo de Lóxias corre para fora da tenda, acompanhado pelos convivas, e, procurando os magistrados píticos, declara: “Ó Terra augusta, a filha de Erecteu, mulher estrangeira, tentou matar-me com veneno!”. Então, os senhores de Delfos decidiram, por muitos sufrágios, que, precipitada do alto de um rochedo, a nossa Rainha morresse por ter planejado a morte de um jovem consagrado e introduzido o assassínio no santuário. E toda a cidade procura esta mulher que, desgraçadamente, empreendeu esta infeliz viagem. É que, vindo ao santuário de Febo pelo desejo de ter filhos, acaba por perder filhos e vida.
Íon, Eurípides
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