Peter Paul Rubens, The death of Adonis
No Idílio I de Teócrito, em que Tírsis canta os amores de Dáfnis, Afrodite aparece ao pastor enamorado para lhe perguntar se ele, que se declarara tão forte perante o Amor, não tinha sido afinal derrubado pela força de Eros (Ἔρως). Aquilo que o pastor responde à deusa é conhecido de todos: Cípris, que não parece tolerar a dor amorosa de Dáfnis, está igualmente, para bem das ironias, apaixonada. O seu amor chama-se Adónis, que, como Dáfnis, apascenta ovelhas:
Não se diz que o boeiro e Cípris…? Vai-te para o Ida!
[…]
Belo é também Adónis: também ele apascenta rebanhos
Mata lebres e persegue na caça todos os animais selvagens. [1]
Ora não há nada que Dáfnis possa fazer para evitar o sofrimento. O canto bucólico das Musas vai, aos poucos, diminuindo, e Dáfnis morre. As suas últimas palavras louvam a transformação das coisas, os espinhos que florescem de violetas ou as árvores que dão fruto. Afrodite, que entre os lamentos do boeiro, não se faz mais escutar, tenta ainda erguê-lo, mas Dáfnis morreu. O seu fado agora é outro.
É também Galo, na Écloga X de Virgílio, que à semelhança de Dáfnis, chora a ausência da amada Licóris. Como o belo Adónis, Galo está rodeado de rebanhos, e, segundo o poeta, não deve envergonhar-se deles, mas das loucuras do amor. Escusado será dizer que Galo não o faz:
Omnia vincit Amor: et nos cedamus Amori. [2]
Omnia vincit Amor: et nos cedamus Amori. [2]
E embora Virgílio venha a substituir, nas Geórgicas, o tão já cantado conceito de Amor pelo ainda pouco trabalhado conceito de Labor [3], Ovídio, nas Metamoforses, dará lugar, uma vez mais, à história de Afrodite e Adónis. É, quanto a mim, a mais bela e conseguida descrição dos amores de Cípris e do pastor sírio. Ovídio retoma aquilo que Apolodoro já tratara nos seus escritos mitólogos, e dedica a sua atenção, logo depois de narrar os mitos de Orfeu e Eurídice (em que o vate, curiosamente, parece repetir as palavras de Galo [4]), Ciparisso, Jacinto, Pigmalião e Mirra, à relação amorosa de Vénus com o jovem Adónis.
A mesma deusa que, antes, zombara de Dáfnis, corre agora pelos bosques, de vestes arregaçadas acima dos joelhos; ela que tanto cuida do aspecto, assemelha-se não mais que à descuidada Diana. É por Adónis que Afrodite corre. Adónis é o que de mais humano e precioso tem a deusa. E, por isso, a par das histórias que lhe conta [5], deitada com ele nas florestas, também lhe pede cuidados. Pois se o maior mal de Afrodite é ser, neste caso, imortal, o maior mal de Adónis é não viver para sempre. Claro é o desastre que sucederá quando a deusa lhe suplica que não lute com animais ferozes: o leitor antecipa-se, Afrodite regressa a Chipre, e Adónis envolve-se numa luta com um javali. Ao perder a sua lança, o javali persegue-o, e acaba por lhe cravar um dos chifres numa das virilhas. Cípris, que viaja no seu carro puxado por cisnes, consegue, lá no alto, ouvir os gemidos do amante, e lança-se dos céus até ao jovem moribundo. O chão está coberto de sangue e não há nada que Afrodite possa fazer para salvar Adónis. Adónis vai morrer e a deusa não pode morrer com ele. Então, numa adopção de costumes muito característica das mulheres gregas, Cípris arranca os cabelos, rasga as suas vestes e lacera o peito com as mãos.
Já Safo encenara assim a dor de Cípris. Contudo, em Ovídio, a deusa não sucumbe por inteiro, e, reclamando furiosa esse direito [6], transforma o sangue do amado numa flor; gosto de chamar-lhe a flor da mais breve eternidade do mundo, porque nasce e morre no mesmo dia para nascer e morrer no seguinte. E assim sucessivamente. Para além disto, Afrodite instaura a tradição de que, naquele mesmo lugar, todos os anos, deverá morrer alguém da mesma forma - morto por um javali -, para que, assim, se recorde a sua mágoa incurável. E "insciente" - para utilizar o mesmo termo de Ricardo Reis, quando escreve:
As Rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
[1] in Poesia grega: de Álcman a Teócrito, trad.: Frederico Lourenço, Cotovia, Lisboa, 2006, p. 158.
[2] O amor vence tudo: e nós cederemos ao amor.
[3] Sobre isto mesmo, convém lembrar, claro está, Trabalhos e Dias, de Hesíodo, e ainda De res rustica, de Marco Terêncio Varrão ou De Agri Cultura, de Catão.
[4] Para justificar a sua irreverência (ao entrar no mundo dos mortos), Orfeu diz que o Amor venceu, e, por isso mesmo, ele ali está, perante Prosérpina e Plutão, disposto a resgatar Eurídice.
[5] Recordo a narrativa que Afrodite conta a Adónis sobre Atalanta e Hipómenes.
[6] Vénus, ao reclamar o direito de transformar o sangue de Adónis em flor, usa como argumento o facto de Perséfone, um dia, ter também transformado um corpo feminino em perfumada hortelã. Como é sabido, Perséfone tinha já disputado o amor de Adónis com Afrodite. Zeus, encarregado de arbitrar a situação, decidiu que Adónis passaria um período de tempo com Perséfone e outro período de tempo com Afrodite (bem à maneira de um outro mito, que envolve também Perséfone). Adónis, que preferia Afrodite, não cumpria o acordo e passava o tempo todo com a deusa de Chipre.
1 comentário:
Para um brevíssimo apontamento, está muito interessante.
Parabéns pelo projecto e boa sorte!
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