Peter Paul Rubens, The death of Seneca (pormenor)
Há um livro que é determinante no meu percurso: as Cartas a Lucílio, de Séneca. Li-o com uns 18 ou 19 anos. É um livro que me acompanha muito. Logo a primeira carta é uma carta sobre o tempo. Lucílio é um discípulo a quem Séneca diz: «Caro Lucílio, já que te queixas de falta de tempo, relata-me o teu dia anterior, diz-me o que fizeste e quanto tempo gastaste com cada coisa; depois de teres feito essa lista, vê de entre as coisas que fizeste quais são as que consideras essenciais e quais são as acessórias, aquelas que poderias dispensar; depois de definires o essencial e o acessório, elimina amanhã o que é acessório e faz apenas as coisas essenciais». O que acho muito bonito nisto é ele aconselhar a fazer uma contabilidade do tempo. Isto é marcante para mim.
Gonçalo M. Tavares em entrevista à LER
Dezembro 2010
Relembrei, a propósito disto, a lição 64 de Substâncias Perigosas (esse pequeno divertimento sobre literatura em cem lições), de Pedro Eiras, da qual passo a transcrever algumas linhas:
A primeira vez que li Séneca, as Cartas a Lucílio, foi na praia, há muitos anos, no alto das dunas. Era pleno Verão. O livro, bloco duro com as suas setecentas páginas, contrastava com as dunas em movimento e as ondas do mar logo abaixo, e o sol alto a arder. Mas eu não dava por nada, foi há muitos anos, o vento levantava a areia sobre as páginas, não era em Roma nem no tempo de Nero, mas era nos meus vinte anos, no alto das dunas, com o ruído das ondas por fundo, e a extensão infinita das águas, e o sol num eterno verão. [...] Lia aquelas frases, aquelas palavras gravíssimas - sabedoria, moral, austeridade - de que o mar ainda se lembrava, o mesmo mar de Séneca e de Lucílio, se alguma vez existiram, porque o verão era propício para duvidar da existência de tudo, como se Roma e o suicídio de Séneca e as citações eruditas fossem só um sonho um pouco incómodo dentro de um calor real como o corpo e a sede e o sono. Foi, portanto, a primeira vez que li Séneca, terrível, admirável Séneca, no ocre agradável daquelas muitas folhas rígidas, mas sempre menos ocres do que as dunas e o sol. [...] Eu lia aquele livro que dificilmente se confunde com os típicos livros de férias, era um livro de setecentas páginas, inverosímil no alto das dunas com o sol por única companhia. Mas eu lia e sentia prazer. Intenso prazer.
Para escrever o que escrevo aqui, reabri, reli as Cartas a Lucílio. E antes mesmo de as ler, as páginas abriram e a areia caiu. Pensei: o prazer, o prazer que senti a ler Séneca, o meu prazer - que disse Séneca sobre isso? Nada, nada, só encontro sabedoria, moral, austeridade, nenhuma palavra sobre o prazer. Foi um gigante, claro, mas sobre as dunas, o sol, as ondas, a areia que se guarda nos livros - não escreveu nada, nada. Séneca não escreveu nada sobre o meu prazer.
EIRAS, Pedro.
"Onde se esconde o prazer?"
in Substâncias Perigosas, Livrododia, 2010.
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