terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Freud e a psicanálise a partir de Jano




Meus deuses antigos e encardidos [...] participam no 
trabalho como pesos de papel para meus manuscritos.

Nessa mesma carta, ele escreve também a respeito da aquisição de mais uma estátua da Antiguidade: "Os deuses da Antiguidade ainda existem, pois consegui alguns recentemente, entre eles um Jano de pedra que me olha com seus dois rostos, com ar muito superior". Esta frase é um tanto enigmática: como pode a estátua, que possui duas faces, cada uma virada para um lado, em sentidos opostos, olhar Freud com um ar superior? Talvez a resposta a esse enigma esteja presente na percepção estética do psicanalista em relação a seu livro [A interpretação dos sonhos], descrita em carta de 21 de setembro daquele mesmo ano:

Em alguma parte dentro de mim há um gosto pela forma, uma apreciação da beleza como uma espécie de perfeição; e as frases tortuosas de meu livro do sonho, com seu desfile de orações indirectas e olhadelas oblíquas para as ideias, ofenderam profundamente um de meus ideais. Tampouco estou inteiramente errado em encarar essa falta de forma como um indício de domínio insuficiente do material. Você deve ter sentido exatamente a mesma coisa, e sempre fomos francos demais um com o outro para que qualquer um de nós precise fingir diante do outro. O consolo está na inevitabilidade: o livro simplesmente não saiu melhor do que isso.

Freus identifica e associa a forma estética de seu trabalho com a estátua de Jano; talvez por isso reconheça na estátua um olhar superior. Na verdade, é o seu olhar em relação à estátua - e ao que ela, naquele momento, se associa - o que lhe confere esse significado. [...] Ressalta-se a ideia de que, na estátua, o futuro e o passado encontram-se condensados em suas duas faces. Essa condensação da representatividade de Jano em muito se assemelha à teoria psicanalítica - o passado expresso no presente - e, de certa forma, o ar de autoridade da estátua talvez pudesse derivar do fato de os antigos já possuírem a consciência das ideias que o criador da psicanálise ainda estava por organizar.

LOBO, Ana Lúcia, Freud: a presença da antiguidade clássica.
São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.

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