quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Sugestão de leitura: o encantador de serpentes, ou o ódio divino*





De repente havia um excesso de ruídos no ar, aquele disco de piano de que Linda tanto gosta, muito alto, um grito estridente de Ísis, os uivos dos cães, Ricardo parado no meio da sala dizendo que precisávamos fazer alguma coisa, Arthur trancando as portas enquanto Júlio caminhava de um lado para outro, fumando sem parar. Na mesa, Pedro, Virgínia, Martha e eu. Martha parecia concentrada fazendo contas na calculadora, anotando números no pequeno bloco, detendo-se às vezes para levantar os óculos redondos que frequentemente escorregam por seu nariz comprido. Virgínia terminava um mapa, traçando riscos retos, azuis ou vermelhos, com quadrados ou triângulos, entre os planetas. Pedro lia. Espiei por cima do seu ombro no momento em que sublinhava uns versos assim: Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento e do mar infecundo e do céu constelado, de todos, estão contíguos às fontes e confins, torturantes e bolorentas, odeiam-nos os deuses.


ABREU, Caio Fernando.
Triângulo das águas, Agir, 2008.



Aquilo que Pedro sublinha são nada mais que alguns versos da Teogonia de Hesíodo, poema que descortina o percurso das treze enigmáticas personagens de Caio Fernando Abreu (tendo apenas em conta, claro está, a parte primeira da obra, "Dodecaedro", e não esquecendo que uma das referidas é somente uma décima terceira voz). 
Tenho lido e relido Triângulo das águas (sobretudo a sua segunda parte, "O Marinheiro", assumidamente inspirada no teatro pessoano), que é, quanto a mim, um dos mais belos marcos entre as recentes criações literárias brasileiras.


* Foi Lygia Fagundes Telles que apelidou Caio de "encantador de serpentes".
 

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