sábado, 11 de dezembro de 2010

Apontamentos para uma segunda nota sobre o amor


Ludovico Einaudi, "The crane dance"





Sustentai-me com passas,
confortai-me com maçãs,
porque desfaleço de amor.


Salomão; Cântico dos Cânticos, 2,5





DECLARAÇÃO. Propensão do sujeito apaixonado para falar abundantemente, numa emoção contida, com o ser amado do seu amor, dele, de si, de ambos: a declaração não incide sobre o testemunho do amor, mas sobre a forma, infinitamente comentada, da relação de amor.


1. A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras. A minha linguagem treme de desejo. A emoção resulta de um duplo contacto: por um lado, toda uma actividade de discurso vem acentuar discretamente, indirectamente, um significado único, que é «eu desejo-te», e liberta-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a linguagem tem prazer em tocar-se a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho este contacto, esgoto-me ao fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.

(Falar apaixonadamente é gastar sem termo, sem crise; é manter uma relação sem orgasmo. Existe talvez uma forma literária para este coitus reservatus: é a afectação.)


2. A pulsação do comentário desloca-se, segue o caminho das substituições. É, a princípio, para o outro que eu discurso sobre a relação; mas o mesmo se pode passar também com o confindente: do tu passo ao ele;  e, depois, do ele passo ao se: elaboro um discurso abstracto sobre o amor, uma filosofia da coisa que não seria portanto, em suma, senão um baratim generalizado. Seguindo agora o caminho em sentido inverso, poder-se-á dizer que toda a conversa que tem por objecto o amor (seja qual for o grau de separação) abrange totalmente uma alocução secreta (dirijo-me a alguém que não conheceis, mas que está ali, no termo das minhas máximas). No Banquete, existe talvez esta alocução: seria Agatão que Alcibíades interpelaria e desejaria aos ouvidos de um analista, Sócrates.


(A atopia do amor, a característica que o faz escapar a todas as dissertações, seria que, em última instância, não é possível falar dele senão segundo uma estrita determinação alocutória; seja filosófico, gnómico, lírico ou romanesco, há sempre, no discurso sobre o amor, uma pessoa a quem nos dirigimos, ainda que essa pessoa tenha passado ao estado de fantasma ou de criatura que há-de vir. Ninguém tem necessidade de falar do amor se não é para alguém.)

BARTHES, Roland.
Fragmentos de um discurso amoroso, Edições 70, 2006.
(Trad.: Isabel Pascoal)



"Warum huldigest du, heiliger Sokrates,
Diesem Jünglige stets? [Kennest] du Größeres nicht,
Warum siehet mit Liebe,
Wie auf Götter, dein Aug' auf ihn?"

Wer das Tiefste gedacht, liebt das Lebendigste,
Höhe Jugend versteht, wer in die Welt geblickt,
Und es neigen die Weisen
Oft am Ende zu Schönem sich.


"Por que honras, ó sagrado Sócrates,

sempre esse jovem? Não conheces, por acaso, nada maior?

Por que o fitam com amor,
como se fitassem os deuses, os teus olhos?"

Aquele que pensou o mais fundo ama o mais enérgico,
Aquele que enfrentou o mundo entende a altiva juventude, 
E enfim, muitas vezes, os sábios
curvam-se aos mais belos.



H
öLDERLIN, F.
 "Sokrates und Alcibiades" 
Retirado daqui.
(Trad.: minha)



Não pode ser Eros, ó Alcibíades, quem assim martiriza a mente de um homem com a imagem do corpo de outro homem, mesmo que fosse a do divinamente modelado corpo de Héracles.
O teu corpo entrou na minha alma como imagem desejada do meu, caso esta minha carne estranha não tivesse nascido de pernas abauladas, nariz de duna da Ásia e faces largas de bochechas pendidas como o cão do Grandei Rei. [...] A filosofia é o remedio maligno inventado por aqueles cuja alma é estranha ao corpo - para quê inquirir pela alma quando tem o corpo tanto por inventar? Mais de cinquenta anos de filosofia estragaram-me o corpo e escureceram-me a alma.
[...] Eu já te amava sem o saber. Mas era mais o passo corrido e os braços fortes e inquietos, o cabelo esvoaçante e a fina linha das tuas ancas que eu desejava. O amor apenas se dá a conhecer quando a alma sofre de jorrante desejo, não pela linha das ancas ou pelo roliço das coxas, cuja posse liberta fantasiosas sensações que deliciam e não satisfazem, mas pela posse voluptuosa de outra alma. [...] Assim eu via como o amor é tão divinamente egoísta e como com razão fizeram os deuses afogar Narciso no pântano da sua beleza. É um abismo o amor, Alcibíades, um abismo com fundo. O fundo é a dor que se sente quando a alma se retorce de desejo por outra alma. [...] Amar é sofrer, já to disse, Alcibíades. Mas sofrimento assim tão encantado por nada o troco, nem mesmo por um lugar vitalício no Pritaneu.

REAL, Miguel.
Carta de Sócrates a Alcibíades, seu vergonhoso amante, Licorne, 2010.


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