sábado, 18 de dezembro de 2010

Lianor de Mileto: segunda e última parte


[...] Por dias, Lianor ganhou esperanças; cedo, porém, as perdeu. Dos filósofos e dos poetas sabe-se pouco; no entanto, uma certeza: não são como os outros, não mudam.
Se Procrustes, o bandido de Ática, que depois de roubar os viajantes, os deitava numa cama de ferro, cortando-lhes os pés se estes fossem mais compridos que a cama, e esticando-os com cordas, no caso de serem mais pequenos; se, dizíamos, Procrustes, o bandido de Ática, aprisionasse um sábio ou um poeta, não teria dificuldade em transformar-lhes o corpo de acordo com as medidas da sua violência, mas o que jamais conseguiria era normalizar-lhes ideias, ou a vontade.
Para Tales, pessimista, o tempo só trazia atributos negativos; magreza à saúde, fraqueza à força.
Paixão significava desilusão; e é o entusiasmo da noite que, mais tarde, de manhã, nos fará ficar sem forças - pensava Tales.
Recusou então Lianor; não por sobranceria, mas por prudência. As mulheres guardam no corpo a serpente, sempre pensara.
Desespero em Lianor, claro, como em qualquer mulher rejeitada.
Quis morrer: atirou-se ao mar.
Tales interrompeu a sua tarefa de olhar para o que não é possível ser olhado, ouvira os gritos dos habitantes de Mileto:
Lianor desaparecera nas águas!
Tales correu para a praia. Olhou para o fundo:
- Este mar matou - disse. - Está calmo demais.
Indisciplinado por natureza, depois deste acontecimento, Tales transformou-se. Levantava-se agora, todas as manhãs, a hora certa.
O que fazia?
Ele, o filósofo, o sábio, pegava no barco, que enchera de arroz na véspera, e entrava no mar. À medida que avançava ia atirando arroz à água, como se esta fosse um ser com fome.
- Se os peixes e a água comerem arroz, os peixes e a água esquecerão a carne de Lianor.
Assim pensava Tales, o sábio.
Durante vinte e cinco anos ele manteve o mar alimentado com arroz.
[...]
O certo é que o corpo de Lianor nunca apareceu.
[...]
Depois de mais uma saída no seu barco, Tales de Mileto morreu, em terra e na sua casa, precisamente às doze horas e quarenta minutos. Não foi sábia, nem não sábia, foi morte: a carne ficou, a alma voltou para o sítio ou para a mentira de onde veio.
Ao fim da tarde um outro facto alvoraçou em definitivo o dia na cidade de Mileto.
O corpo de Lianor chegara à costa.
Intacto.
[...]


TAVARES, Gonçalo M.
"Lianor de Mileto"
in Histórias falsas, Campo das Letras, 2005.

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