quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Lianor de Mileto: primeira parte


O episódio é conhecido: contou-o Platão. Tales de Mileto absorvido pelas ideias, olhava para o céu quando caiu a um poço. Uma criada Trácia, muito simples, quase analfabeta, presenciou a cena e desatou às gargalhadas.
Teimaram alguns historiadores em classificar como não verdadeira a anedota; outros reduziram-na a mera ilustração da conhecida distracção dos sábios.
Cumpre-nos, pois, repor a verdade e avançar um pouco. Tudo ocorreu como se conta, e mais: a criadita, nessa instante, apaixonou-se por Tales de Mileto, o sábio.
A casa onde se vive, bem o sabemos, é a outra parte do corpo; a roupa, essa, a casa mais próxima. Nela, na criada, os tecidos eram pobres; nele, no sábio, desleixados. Entre os dois a diferença entre quem se esquece da aparência porque obcecado no que existe por detrás do visível, e quem não se pode lembrar dela, pois não tem meios para a manter elevada, distinta.
O nome dela era Lianor. Acrescentamos: de Mileto. Haviam, pois, crescido na mesma cidade e no mesmo tempo, Lianor e Tales.
É costume os tédios entrarem em acordo com as idades, mas nestas duas personagens não: Lianor trabalhara desde sempre - e quem assim faz não desenvolve filosofias nem disponibilidade para localizar a alma. Tales, pelo contrário, cedo começara a desenhar o seu destino de filósofo. Nele a sorte de ter nascido alguns metros acima do chão. Primeiro trabalho: a preguiça.

[...]


TAVARES, Gonçalo M.
"Lianor de Mileto"
in Histórias falsas, Campo das Letras, 2005.

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